domingo, 21 de junho de 2009

O EVANGELHO DOS ABACAXIS


Chegamos à Guiné-Bissau para levar o cristianismo aos nativos. Depois de alguns anos longe de casa, começamos a sentir falta de certos hábitos do nosso país. De forma especial, alguns alimentos comuns em nossa terra de origem.

Certo dia, descobri numa missão vizinha algumas mudas de abacaxi. Comprei algumas dezenas e pedi a um nativo que as plantasse para nós. Depois de um longo período de espera, aquele solo que raras vezes produzira frutas começou a brotar seus primeiros pendões. Aguardamos com ansiedade o natal, ocasião quando estariam maduros, prontos para serem colhidos.

Qual não foi nossa surpresa quando descobrimos que os nativos roubavam nossas preciosidades antes delas amadurecerem. Revoltado, decidi fechar a clínica que distribuía medicamentos aos nativos, em retaliação ao seu desrespeito para conosco.

As crianças da aldeia começaram a ficar doentes, e quando eles vinham buscar remédios, respondíamos que não os daria, pois eles roubavam nossos abacaxis.

Como o roubo persistia, decidimos também fechar o armazém onde vendíamos produtos que não havia na floresta. Pensava: Agora eles vão ter uma lição!

Os nativos começaram a voltar do vilarejo para a selva. Não havia mais motivo para estarem ali. Nem remédios, nem sal... Ficar na aldeia ou floresta era a mesma coisa.

Assim, acabei por me achar ali, quase sozinho. Eu que tinha saído do meu país para falar de Cristo aos nativos, estava destruindo minha oportunidade de aproximação a eles devido ao amor a uma moita de abacaxis.

Decidi mudar de atitude. Fiz uma prece entregando a plantação a Deus. Parei de me importar com o que aconteceria a ela. Os nativos restantes começaram a achar estranho. Senhor, por que o senhor parou de reclamar do roubo dos abacaxis? O senhor virou cristão?

Foi um golpe tremendo. Percebi que meu apego à plantação me fazia viver uma prática diferente da teoria religiosa que eu apregoava. Como querer que os nativos se interessem pelo Cristo que eu anunciava, se nem eu mesmo seguia realmente seus ensinos?

Respondi aos nativos. A plantação não é mais minha. Eu a dei para Deus. Assustados, temendo roubar a Deus, eles deixaram de pegar as frutas, que começaram a apodrecer nos pés.

Até que colhi alguns abacaxis, deixando outros para os nativos. Antes da sobremesa, agradeci a Deus dizendo: Senhor, obrigado por me permitir comer dos seus abacaxis.

A essência do cristianismo traz consigo o conceito de renúncia e santidade. Abrir mão do que Lhe era de direito foi a atitude de Cristo. Mesmo sendo santo e digno em todos os sentidos, Ele não se apegou ao direito de ser igual a Deus, mas assumiu os nossos pecados como se fossem Seus, para nos reconciliar com Deus, de quem estávamos afastados pelo pecado.

O que fazer diante do que foi exposto? Podemos realizar uma revisão de nossas práticas, buscando observar se vivemos o que cremos, numa prática coerente com nossa fé, ou permanecer agarrados ao Evangelho dos abacaxis. A decisão agora é de cada um de nós.


Renato Gama - Médico e acadêmico de teologia pela UNIGRAN

Artigo baseado na reflexão da Pra. Mirian Natume, proferida em 21 de junho de 2009.


segunda-feira, 15 de junho de 2009

O Evangelho das facilidades


Texto básico: Carta de S. Paulo aos Filipenses, capítulo 4, versículos de 11 a 13.


11
Não digo isto como por necessidade, porque {já} aprendi a contentar-me com o que tenho.
12
Sei estar abatido {e} sei também ter abundância; em toda a maneira e em todas as coisas, estou instruído, tanto a ter fartura como a ter fome, tanto a ter abundância como a padecer necessidade.
13
Posso todas {as coisas} naquele que me fortalece.


Alguns fragmentos bíblicos acabaram por virar quase que ditados da sabedoria popular. No texto base, o versículo 13 é um bom exemplo disso. Outro caso que representa esta percepção é o que diz: “... somos mais que vencedores por meio dAquele que nos amou...”.
Ao analisar o contexto destes aforismos, percebemos que estes textos têm sido utilizados em uma interpretação equivocada, completamente fora de seu significado original. Longe de representar meramente um: “comigo ninguém pode”, ou “ninguém me segura”, os ensinamentos do autor têm objetivo bastante diverso. Vejamos:
Paulo de Tarso, anteriormente chamado de Saulo, era um homem de posição social elevada, membro de grupos sociais importantes, com cultura esmerada, poliglota, detentor de cidadanias israelense, grega e romana, era também um religioso exemplar da tradição judaica.
Certo dia, este virtuoso fariseu teve um encontro especial com Cristo, desde quando mudou seus paradigmas. Paulo passou a considerar todas as suas prerrogativas como nada (nas palavras originais do apóstolo, manuscritas em grego, esterco). Depois deste encontro, o pomposo e influente religioso, passou a entender que as verdadeiras virtudes estavam em deixar Cristo cumprir Seus propósitos em sua vida, mesmo que isso lhe acarretasse certas vezes profunda dificuldade.
E sua vida foi um grande exemplo disso. Fez viagens longas, a pé, no lombo desconfortável de animais e, quando melhor, em porões de navios (um deles, inclusive naufragou como nos conta a história). Teve momentos de alegria, mas sofreu perseguições, prisões, apedrejamento, necessidades financeiras e desprezo.
Falando aos cristãos de Filipos, Paulo faz a afirmação que nos serve de texto básico: estou treinado para ter abundância e necessidade. A passar fome e ter fartura. Já estou experiente em todas estas coisas. Posso (suportar) todas (estas) coisas, pois Cristo me fortalece.
Na contramão do ensino paulino, observamos algumas teologias afastarem-se do ensino original, quando muitas comunidades de fé ensinam um evangelho de facilidades, no qual o cristão verdadeiro não fica doente, não passa por necessidades financeiras, não sofre qualquer tribulação, enfim, é o próprio Superman. E para alcançar este status, muitas vezes o preço é cobrado literalmente em Reais, sendo o tamanho da bênção proporcional ao montante da oferta.
Com isso, estamos observando a formação de uma geração de cristãos imaturos, que entram em crises existenciais ao primeiro sinal de turbulência, e que condicionam sua fidelidade a Deus ao volume de bênçãos materiais que recebem. E sob a justificativa bíblica (descontextualizada, é claro) de que “podemos todas as coisas” e que “somos mais que vencedores”.
Fica o desafio de buscar a compreensão coerente do ensino bíblico, e viver um cristianismo consistente, no qual a fé e o amor ao Mestre nos motivem e nos capacitem a, não apenas suportar as crises, mas também permitir que elas amadureçam nosso caráter.

Renato Gama - médico e acadêmico de teologia pela UNIGRAN.
Baseado na reflexão do Pr. Dr. Carlos Oyama, ministrada em 14 de junho de 2009.