quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Reflexão: (Des)esperança



Manhã de segunda-feira. Seu João estava decidido a dar entrada no seu pedido de aposentadoria. Afinal, foram 35 anos de trabalho árduo imprescindíveis para o sustento da família. Hoje, aos 62 anos de idade, desempregado, cabelos e barba brancos, corpo cansado, chegou a hora de ver os netos crescerem, tornarem-se adultos e dar continuidade à vida... Às cinco horas da manhã, seu João já estava acordado. Banho tomado, café da manhã bem preparado, cabelo penteado, sapato escovado: tudo pronto para procurar seus direitos, aqueles sobre os quais ouviu no noticiário da TV.

Bem cedinho, assistindo mais um miraculoso clarear do dia, seu João aguarda na fila para receber sua senha. Para espantar a aflição da espera, o jeito é conversar com os companheiros que acabou de conhecer. Ao ser atendido, seu João foi informado já não havia mais senha e que, para pedir sua aposentadoria, seria necessário chegar mais cedo. Sem compreender direito por que não havia mais senha, seu João não questionou. Levou sua pasta de documentos para casa e aguardou até o dia seguinte para começar tudo outra vez...

Madrugada de terça-feira. São três horas e seu João já está em pé. Um gole de café, um pãozinho com manteiga, como sua saudosa amada lhe preparava todos os dias durante os 31 anos nos quais esteve em sua companhia.

Ao chegar à fila uma surpresa: somente 15 pessoas aguardavam ansiosas para serem atendidas. Talvez fosse em razão da chuva fina que caía. Apesar de toda alegria de seu João, naquela manhã permaneceu calado, quieto, sem saber bem a razão.

Quatro horas depois foi atendido. Pegou sua senha. Sentou-se num banco próximo a uma pilastra, encostou a cabeça cansada e aguardou.

Algumas horas depois, seu João finalmente deu entrada no seu pedido de aposentadoria. Pediram para que aguardasse uma correspondência, o que poderia ocorrer dentro de algumas semanas ou meses.

O tempo passou. Semanas, meses... Um ano. Numa tarde o carteiro apareceu: era a resposta. Atordoado, seu João abriu a carta e ficou espantado. Não era a resposta ao seu pedido, era uma solicitação para que seu João levasse alguns documentos sobre os quais nunca tinha ouvido falar.

Na manhã seguinte, seu João vai em busca de informações sobre quais documentos eram aqueles e como os conseguiria. Pasmado, seu João ouviu o funcionário dizer que a anotação em sua carteira não poderia ser aceita sem que apresentasse "Fichas de Registro de Empregados", ou "estrato analítico do FGTS", ou, simplesmente, o endereço do lugar onde havia trabalhado, pois seria necessário mandar um funcionário até lá, o que poderia levar meses.

Seu João sentiu o chão desabar. Seus olhos registraram a indignação com que as pessoas são tratadas depois de anos de dedicação. Dedicação à família, à sociedade, ao seu país.

Desolado, seu João seguiu em busca dos documentos. "O moço anotou tudo pra 'mim' buscar", disse ele. Pobre seu João. A decepção foi tamanha que nem pôde perceber a fisionomia triste do funcionário já acostumado com o sofrimento de 'Joãos', 'Marias' e 'Josés'.

Com os documentos que conseguiu, seu João foi outra vez lutar por sua aposentadoria.

Cansado, aguardou na fila para pegar sua senha, desta vez para entregar os documentos solicitados.

Ao ser atendido, foi informado que naquele dia já não seria mais possível atendê-lo, pois na correspondência estava escrito para comparecer até o meio-dia, e já eram quase duas horas da tarde.

Angustiado, seu João entrou no ônibus de volta para casa e não suportou: as lágrimas invadiram seus olhos pesados e rolaram pelo seu rosto. Nunca havia passado por tamanha humilhação.

Do tipo que nunca comprou a prestação, detesta carnês e não usa cheques, seu João nunca deixou de honrar seus compromissos. Pela primeira vez, seu João foi obrigado a comprar seu alimento sem apresentar o dinheiro para o vendedor. Vexado, não havia outra escolha: ou ficava sem o alimento, ou agia daquela forma, pois já utilizara toda sua economia desde que fora despedido há dois anos.

Foi preciso pedir ajuda aos filhos para não passar necessidades, depois de tantos anos trabalhados...

No dia seguinte conseguiu entregar os documentos e ouviu mais uma vez para que aguardasse outra correspondência em casa. Mais algumas semanas se passaram. O pedido do seu João não foi aceito e... seu grito... não foi ouvido. Foi preciso recorrer.

Três anos se passaram. Seu João teve que sair da casa onde morou com sua esposa e filhos durante mais de 30 anos. Era ali que seu João queria passar os últimos dias de sua vida, mas foi preciso alugar para sobreviver. Enquanto isso, seu João foi morar na casa de um dos filhos. A vantagem foi ficar próximo aos netos. Difícil era acordar e não ter mais a imagem de toda uma vida, do lugar onde amou, onde criou os filhos, da casa que construiu para passar o resto de sua vida.

Obrigado a viver durante três anos sem o domínio de sua vontade, privado de um patrimônio que deveria lhe garantir uma sobrevivência digna, seu João caiu doente. A saudade das coisas simples que podia fazer, dos lugares onde podia ir, sem precisar contar com a caridade das pessoas tomou conta de sua alma.

Seu João se rendeu à desesperança. Devido à debilidade resultante da doença e da fadiga, seu João se prostrou e num último reflexo de consciência buscou as lembranças que por muitos anos o fizeram feliz.

Pensou em tudo o que estava deixando nesta vida, deu um último suspiro e pensou numa passagem bíblica: "Ai dos que decretam leis injustas, e dos escribas que prescrevem opressão. Para desviarem os pobres do seu direito, e para arrebatarem o direito dos aflitos do meu povo; para despojarem as viúvas e roubarem os órfãos! " Isaías 10:1 e 2.

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Autor: Ana Carolina Tietz
Fonte: Secretaria de Imprensa da AL - O Estadão Matogrossense

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